Desarmamento e
genocídios
Gary
North
No dia 24 de abril deste ano, o
primeiro genocídio do século XX completará 98 anos: o governo turco dizimou
mais de um milhão de armênios desarmados. A palavra-chave da frase é
justamente esta última: "desarmados".
Os turcos escaparam de uma
condenação mundial porque utilizaram a desculpa de tudo ter sido uma 'medida de
guerra'. Findada a Primeira Guerra Mundial, eles não sofrerem nenhuma
represália por este ato de genocídio. É como se o governo turco não
houvesse conduzido absolutamente nenhuma medida de homicídio em massa contra um
povo pacífico.
Outros governos perceberam que o
ardil funcionara e rapidamente tomaram nota do fato. Era um precedente
internacional conveniente demais para ser ignorado. Setenta e nove anos após o início
daquele genocídio, o famoso Hotel Ruanda abriu as portas.
Os Hutus também se safaram.
Ironicamente, pelo menos uma década antes do massacre em Ruanda — gostaria de
me lembrar da data exata -, a revista americana Harper's publicou um artigo em
que profetizava com acurácia este genocídio, e por uma razão muito simples: os
Hutus tinham metralhadoras; os Tutsis, não. O artigo foi escrito em um
formato de parábola, sem se preocupar em fazer previsões especificamente
políticas. Lembro-me vivamente de, ao ler aquele artigo, ter
imediatamente pensado: "Se eu fosse um Tutsi, emigraria o mais rápido
possível".
O fato é que, em todo o século XX,
não foi um bom negócio ser um civil. As chances sempre estavam contra
você.
Péssimas notícias para os civis
Tornou-se um lugar comum dizer que
o século XX, mais do que qualquer outro século na história conhecida da
humanidade, foi o século da desumanidade do homem para com o homem.
Embora esta frase seja memorável, ela é um tanto enganosa. Para ser mais
acurada, o certo seria modificá-la para "o século da desumanidade dos
governos para com civis desarmados". No caso do genocídio, no
entanto, tal prática não pode ser facilmente descartada como sendo um dano
colateral imposto a um inimigo de guerra. Trata-se de extermínio
deliberado.
O século XX começou oficialmente do
dia 1º de janeiro de 1901. Naquela época, uma grande guerra já estava em
andamento; portanto, vamos começar por ela. Mais especificamente, era a
guerra iniciada pelos EUA contra as Filipinas, cujos cidadãos haviam sido
acometidos da ingênua noção de que a libertação da Espanha não implicava uma nova
colonização pelos EUA. Os presidentes americanos William McKinley e
Theodore Roosevelt enviaram 126.000 tropas para as Filipinas para ensinar
àquele povo uma lição sobre a moderna geopolítica. Os EUA haviam comprado
as Filipinas da Espanha por US$20 milhões em dezembro de 1898. O fato de
que os filipinos haviam declarado independência seis meses antes dessa compra
era irrelevante. Um negócio é um negócio. Aqueles que estavam sendo
comprado não podiam dizer nada a respeito, muito menos protestar.
Naquela época, era uma prática
comum fazer a contagem de corpos dos combatentes inimigos. A estimativa
oficial foi de 16.000 mortos. Algumas estimativas não-oficiais falam em
aproximadamente 20.000. Para os civis, tanto naquela época quanto hoje,
não há estimativas oficiais. O número mais baixo fala em 250.000
mortos. A estimativa mais alta é de um milhão.
E então veio a Primeira Guerra
Mundial e as comportas foram abertas — ou melhor, os banhos de sangue foram
institucionalizados.
Turquia, 1915
O genocídio
armênio de 1915 foi precedido por uma limpeza étnica parcial, a qual durou
dois anos, 1895—97. Aproximadamente 200.000 armênios foram executados. Os armênios eram facilmente identificáveis.
Alguns séculos antes, os invasores turcos otomanos os haviam forçado a
acrescentar o "ian/yan" aos seus sobrenomes. Como os armênios
estavam dispersos por todo o império, eles não possuíam o mesmo tipo de
concentração geográfica que outros cristãos possuíam na Grécia e nos
Bálcãs. Eles nunca organizaram uma força armada para oferecer
resistência. E foi isso o que os levou à destruição. Eles não
tinham como lutar e resistir.
Os armênios eram invejados porque
eram ricos e mais cultos do que a sociedade dominante. Eles eram os
empreendedores do Império Otomano. O mesmo ocorreu na Rússia. O
mesmo ressentimento existia na Rússia, embora não com a intensidade do
ressentimento que existia na Turquia.
As estimativas não-turcas falam em
algo entre 800.000 e 1,5 milhão de armênios mortos. Embora a maioria
destes homicídios tenha ocorrido com o uso de baixa tecnologia, os métodos eram
extremamente eficazes. O exército capturava centenas ou milhares de
civis, levava-os até áreas desertas e inóspitas, e os deixava lá até que
literalmente morressem de fome.
O nome Arnold Toynbee é bem
conhecido. Já na década de 1950 ele era um dos mais eminentes
historiadores do planeta. Seu estudo, compilado em 12 volumes (1934—61),
sobre 26 civilizações não possui precedentes em sua amplitude. Sua obra O Tratamento dos Armênios no
Império Otomano foi sua primeira grande publicação. Por que algumas organizações
armênias não dão ampla divulgação e notoriedade a este documento é algo que me
escapa completamente. O livro está em domínio público. A seção a
seguir, que está na Parte VI, "As Deportações de 1915: Procedimento",
é iluminadora. Leia-a com atenção. Trata-se do aspecto crucial de
todo o genocídio. O governo confiscou as armas dos cidadãos.
Um
decreto foi expedido ordenando que todos os armênios fossem desarmados.
Os armênios que serviam no exército foram retirados das fileiras combatentes,
reagrupados em batalhões especiais de trabalho, e colocados para construir
fortificações e estradas. O desarmamento da população civil ficou a cargo
das autoridades locais. Um reino de terror foi instaurado em todos os
centros administrativos. As autoridades exigiram a produção de uma
quantidade estipulada de armas. Aqueles que não conseguissem cumprir as
metas eram torturados, frequentemente com requintes satânicos; aqueles que, em
vez de produzir, adquirissem armas para repassá-las ao governo — comprando de
seus vizinhos muçulmanos ou adquirindo por qualquer outro meio —, eram
aprisionados por conspiração contra o governo.
Poucos
desses eram jovens, pois a maioria dos jovens havia sido recrutada para servir
o estado. A maioria era de homens mais velhos, homens de posse e líderes
da comunidade armênia, e tornou-se claro que a inquisição das armas estava
sendo utilizada como um disfarce para privar a comunidade de seus líderes
naturais. Medidas similares haviam precedido os massacres de 1895—96, e
um mau presságio se espalhou por todo o povo armênio. "Em uma certa
noite de inverno", escreveu uma testemunha estrangeira desses eventos,
"o governo enviou soldados para invadir as casas de absolutamente todos os
armênios, agredindo as famílias e exigindo que todas as armas fossem
entregues. Essa ação foi como um dobre de finados para vários
corações".
Desarmamento
Como mostrou a organização Jews for
the Preservation of Firearms Ownership (Judeus pela Preservacao da Propriedade
de Armas de Fogo), o modelo do Decreto do Controle de Armas de 1968 nos EUA —
até mesmo as palavras e o fraseado — foi copiado da legislação de 1938 de
Hitler, a qual, por sua vez, era uma revisão da lei de 1928 aprovada pela
República de Weimar. Uma boa introdução a esta história politicamente
incorreta da história do controle de armas pode ser vista aqui. Quando as tropas de Mao Tsé-Tung
invadiam um vilarejo, elas capturavam os ricos. Em seguida, elas
ofereciam a devolução das vítimas em troca de dinheiro. As vítimas eram
libertadas quando o pagamento fosse efetuado. Mais tarde, o governo
voltou a sequestrar essas mesmas pessoas, só que desta vez exigindo armas como
resgate. Ato contínuo, assim que as armas eram entregues, as vítimas eram
libertadas. Essa mudança de postura — exigir armas em vez de dinheiro —
fez com que a negociação parecesse razoável para as famílias das próximas
vítimas. Porém, tão logo o governo se apossou de todas as armas de uma
comunidade, os aprisionamentos e as execuções em massa começaram. A ideia de que o indivíduo tem o
direito à autodefesa era tão comum e difundida no século XVIII que ela foi
escrita na Constituição americana: a segunda emenda. Carroll Quigley,
eminente historiador e teórico da evolução das civilizações, era também um
especialista na história do uso de armas pela população. Ele escreveu um
livro de 1.000 páginas sobre o uso de armas como meio de defesa durante a Idade
Média. Em sua obra Tragedy
and Hope (1966), ele argumenta que a Revolução Americana foi bem sucedida
porque os americanos possuíam armas de poder de fogo comparável àquelas em
posse das tropas britânicas. Foi exatamente por isso, disse ele, que
houve toda uma série de revoltas contra governos despóticos em todo o século
XVIII. Tão logo as armas em posse do
governo se tornaram superiores, os movimentos e manifestações em prol da
redução do tamanho do estado deixaram de ter o mesmo êxito que haviam tido nos
séculos anteriores.
Há uma razão por que os governos
são tão empenhados em desarmar seus cidadãos: eles querem manter seu monopólio
da violência a todo custo. A ideia de haver cidadãos armados é apavorante
para a maioria dos políticos. Afinal, para que serve um monopólio se ele
não pode ser exercido? Cidadãos armados impõem um limite natural à
tirania do estado.
Conclusão
Genocídios acontecem.
Mas não há genocídio quando os
alvos estão armados.
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