Pesquisa demonstra que mundo virtual torna jovem mais participativo em aula:
Não há, certamente, ninguém, com mínimo espírito crítico, que a partir de certo momento da vida escolar não se tenha perguntado: “Para que estou aprendendo isso? O que isso tem a ver comigo?” As novas tecnologias e seus apelos cada vez maiores tornam esses questionamentos recorrentes, agravados hoje pela inquietação e impaciência dos jovens. Talvez, associem a escola a uma diligência que perdeu os cavalos e segue por áridos descaminhos impulsionada pela inércia, carregando giz e quadro negro.
Depois de licenciada em Letras, Melina Aparecida Custodio foi à sala de aula dedicando-se ao ensino de gramática e produção de textos em várias escolas privadas que adotam sistemas de ensino. Passou a incomodá-la a postura de espectador dos alunos que simplesmente recebiam o conhecimento, o registravam e não sabiam o que fazer com ele. A vaga promessa de que no futuro serviria para alguma coisa, que cairia no vestibular, soava distante.
Resulta daí um grande contingente de alunos desinteressados, mesmo porque grande parte das informações passadas em sala e abordadas nas diversas apostilas é facilmente encontrada na internet. São circunstâncias que geram em sala tédio, conversas, indisciplinas e tentativas de uso do celular, mesmo proibido por lei, como fuga do que se tornou enfadonho.
Preocupada e disposta a mudar esse quadro, Melina voltou ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp para cursar pós-graduação no Departamento de Linguística Aplicada, em que atuam professores especializados no ensino de língua materna. Lá se discutiam, entre outras, questões relacionadas às culturas da juventude, ao uso de novas tecnologias no ensino de línguas, embora os caminhos a serem percorridos não estivessem ainda totalmente pavimentados. Orientada pela professora Roxane Rojo, ela se propôs a estabelecer os possíveis diálogos entre produção escrita na escola, novas tecnologias e culturas da juventude, em investigação que culminou em sua dissertação de mestrado.
Ao constatar que a cultura dos jovens provinha essencialmente do mundo virtual, Melina teve a ideia de pesquisar possibilidades e implicações de sua utilização na escola. Partiu, então, para um trabalho diagnóstico. Procurou verificar o que os alunos realizavam com grande motivação no mundo virtual e a que situações a escola os submetia para tentar motivá-los a aprender o conteúdo que se propunha a ensinar. Essencialmente, ela pretendia descobrir o que os motivava a produzir na internet e por que não o faziam em sala de aula, em que angustiados, descambavam para a indisciplina, fenômeno recorrente na escola de hoje.
Ela partia da crença de que era preciso fazer os alunos se apaixonarem pelo conteúdo de modo a se mostrarem motivados a perceberem o significado do que estavam aprendendo. “Para que isso ocorra não se pode tratar o aluno como mero espectador, despejando conhecimento e informações a que ele já tem acesso através da internet. Claro que estou considerando a realidade de uma região em que a maioria dos alunos tanto das escolas privadas quanto públicas dispõem da web”, pondera.
Caminhos
Depois de ter diagnosticado as atividades de seus alunos na internet, Melina se propôs a determinar como essas vivências poderiam ser aproveitadas na sala de aula. Portanto, seu trabalho teve como principal objetivo compreender possíveis relações entre as práticas letradas de jovens no espaço virtual e a influência desse repertório na produção colaborativa de texto escrito e, assim, inferir quais ganhos a exploração dessas relações podem trazer ao ensino-aprendizado da escrita na escola.
Em seu estudo de caso, baseado em um grupo de alunos do oitavo ano do segundo ciclo do ensino fundamental, em escola privada da cidade de Campinas, SP, utilizou uma proposta de produção colaborativa digital, do gênero tragédia.
A atividade foi estruturada de forma a lhe permitir analisar durante o seu desenvolvimento os registros gerados e decorrentes – através da ferramenta digital Google Docs, conectada à internet –, de práticas colaborativas de escrita de grupos de cinco alunos. A colaboratividade estava garantida através de uma atividade conjunta, para a produção de um texto, utilizando uma ferramenta virtual que não exige que os participantes precisem trabalhar ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
Basta que um dos componentes do grupo inicie o processo para que todos os demais participantes entrem e comentem, modifiquem, sugiram alterações e melhoras. Resulta um trabalho conjunto à distância, em que as várias etapas do procedimento, do início à conclusão, possam ser acompanhadas pelo professor.
A tarefa proposta assentou-se sobre uma abordagem prevista no planejamento da escola, baseada na leitura de texto que faz parte da cultura valorizada, a tragédia de Hamlet, em Rei Lear, de Shakespeare, sobre o qual rotineiramente deveria ser produzido um texto em sala. Procedida a apresentação e discussão de trechos dessa tragédia, a professora propôs que cada grupo produzisse livremente outra tragédia, mas ligada às suas vidas, às realidades que estavam vivendo, mobilizando para tanto elementos provenientes de suas culturas.
Com efeito, nas orientações impressas entregues aos alunos lê-se: “A tragédia a ser produzida deverá abordar um tema de interesse do seu grupo, explorar recursos e assuntos com os quais nem os gregos (referência à tragédia grega também estudada) nem Shakespeare sonharam”.
Portanto, os alunos podiam produzir a tragédia não só a partir dos conhecimentos adquiridos na escola, mas foram instigados a utilizar repertórios, não valorizados pela escola, mas que fazem parte dos seus universos: letras de música, videogames, histórias em quadrinhos de estilo japonês, os mangás, animações produzidas no Japão, os animês.
Ao final de um bimestre, resultou um trabalho muito rico, com participações e envolvimentos dos alunos, como se pode depreender da leitura dos textos reproduzidos nos anexos da dissertação. O resultado obtido não encontra paralelo nos trabalhos realizados rotineira e individualmente na sala de aula, em que o aluno dispõe de tempo limitado para elaborar um texto em que suas vivências culturais não são solicitadas.
Consequências
Ao serem motivados a utilizarem textos das várias mídias que frequentam e abordam temas relacionados às suas vidas, os alunos sentem resgatadas e valorizadas suas vivências fora da escola e sua essência humana. Nesse processo, a literatura valorizada e o conteúdo programático continuam utilizados, mas de forma diferente. “Ao fazer o aluno compreender a importância dos seus conhecimentos e vivências e como eles podem ser utilizados na escola, propicia-se o despertar de uma paixão. A partir desse sentimento, ele se sente motivado a ir à escola, a trabalhar, a mostrar o que sabe e revela-se produtivo e criativo. É o que se quer desenvolver no jovem hoje: participação na sociedade, no mundo do trabalho com atitudes éticas, cívicas e proativas”, diz a pesquisadora, com entusiasmo.
As mudanças de atitudes emergem quando os próprios alunos assumem o papel do professor manifestando irritação por erros dos colegas, como os relacionados à norma culta da língua. E manifestam cuidados mútuos em relação às suas escritas, retomando regras que pareciam ter sido ensinadas em vão na sala de aula para justificar correções no texto.
À medida que ocorre a produção do texto, links remetem ao material consultado e que serviu de base para sua elaboração, o que permitia que a professora se inteirasse dos gêneros textuais que os interessavam. A partir deles, ela explorou relações com os conteúdos a serem ensinados em sala de aula para que, partindo daquilo que fazia sentido a eles, pudesse conduzi-los ao aprendizado esperado.
Valendo-se então da motivação despertada, Melina estabeleceu um diálogo entre os interesses dos alunos e os objetivos da escola que, no seu caso, eram os conteúdos gramaticais e o trabalho com gêneros valorizados da literatura. Concretizado esse diálogo, a professora observou o aumento da autoestima e grande melhora na disciplina, reações que ela atribui ao fato de os alunos não se sentirem mais apenas espectadores, mas também produtores que tinham encontrado a oportunidade de utilizar seus conhecimentos. E mais, a disciplina de redação não se reduziu à apresentação de textos de livros ou jornais, em cuja qualidade deveriam se espelhar. Fato que muitas vezes contribuía para lhes rebaixar a autoestima, pois criavam expectativas absurdas: elaborar individualmente em folha avulsa, em 50 minutos, textos semelhantes àqueles que foram produzidos por profissionais em maior intervalo de tempo e revisados por colaboradores, tal como ocorre na rotina de jornais e editoras.
A conclusão da pesquisadora é a de que o conhecimento individualizado, hierarquizado, não motiva o aluno, não desperta paixão, não leva a uma postura proativa, não atrai e em boa parte dos casos gera indisciplina. Diante da percepção de que os jovens lidam na internet, no seu dia a dia, de forma muito interativa, com gêneros que têm muito a ver com o gênero narrativo trabalhado na escola, que envolve igualmente ficção cientifica e o fantástico, ela decidiu-se por utilizar colaborativamente habilidades e conhecimentos que fazem parte de seus universos para a produção de textos que remetem aos conteúdos valorizados na escola.
Em sua dissertação, Melina chama a atenção para a extrema importância da valorização das coleções dos alunos na garantia do aprendizado efetivo, sem escamotear as questões sociais e culturais imbricadas nos mais diversos usos da linguagem. Considera essa abordagem bastante diferente daquelas sedimentadas na escola que ensinam os gêneros pelos gêneros, sem que os alunos saibam os contextos em que ocorrem e com quais propósitos.
Para ela “vem bem a propósito a discussão do papel do professor, que frente a esse panorama, não pode mais ter sua função reduzida à transmissão de informações. A ele são lançados os desafios de conhecer as vivências culturais de seus alunos, construir projetos de trabalho que os insiram em práticas autênticas de produção de conhecimento, preparando-os para práticas bem-sucedidas de participação nas múltiplas maneiras de ser humano”.
Com informações de Jornal da Unicamp.
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