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Euler Júnior/EM/D.A Press
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"Tenho 80 processos me esperando ali. Se abrir um por um, não tem nenhum processado que ganha acima de dois salários mínimos", Marcelo Cunha de Araújo, doutor em direito constitucional
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De cada 1 mil homicídios ocorridos no Brasil, 50 inquéritos policiais chegam ao fim apontando a autoria do crime, quatro acusados são condenados, mas apenas um suspeito fica efetivamente preso. Os números embasam estudo sobre o sistema penal brasileiro feito pelo promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo, doutor em direito constitucional e mestre em direito processual: "No país, impera a impunidade quase que absoluta. Não é absoluta porque há no sistema prisional um número até excessivo de presos. Ocorre que o sistema é mal aplicado", afirma. Para ele, a impunidade é fomentada pelo direito assegurado na Constituição de o acusado responder em liberdade até que se esgotem todos os recursos no Supremo Tribunal Federal (STF), o que pode durar mais de 30 anos, correndo o risco da prescrição dos crimes.
Em 2008, a Polícia Civil contabilizou 811 inquéritos de assassinato em Belo Horizonte, mas apenas 300 julgamentos foram feitos nos dois tribunais do júri do Fórum Lafayette. De janeiro a junho deste ano foram 366 homicídios e 170 julgamentos.
O mais grave, de acordo com o promotor, é que, embora valha para todos os cidadãos, na prática esse direito só é conquistado pelas pessoas de maior poder aquisitivo. Aos seus alunos do curso de direito na PUC Minas o promotor se despe do que chama de "carapaça do juridiquês" para apontar, em bom português, as falhas do sistema penal que geram a impunidade, corroborando, com a propriedade de um jurista, o que se tornou senso comum nas rodas de bate-papo: quem tem condições financeiras para constituir um advogado competente consegue se esquivar das punições previstas no Código Penal, sobretudo da prisão. "O direito penal é totalmente esquizofrênico, não funciona. O mais triste é que a gente que trabalha no dia a dia vê que ele é só para o pobre. Tenho 80 processos me esperando ali. Se eu abrir um por um, não tem nenhum processado que ganha acima de dois salários mínimos", disse Araújo, que trabalha no Juizado Especial de Contagem, na Grande Belo Horizonte.
CLASSES De acordo com a natureza do delito, o promotor faz uma distinção entre "crime de rico e de pobre", afirmando que eles são tratados de forma diferenciada pelas regras do sistema. O primeiro é exemplificado com os de colarinho branco, como sonegação fiscal, contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, enquanto na outra categoria se enquadram os crimes violentos (homicídio, tráfico de drogas e roubo). "No Brasil não há qualquer punição para crime de colarinho branco. A pessoa pode desviar o dinheiro que quiser, pode haver prova de tudo, mas os advogados conseguem barrar isso na Justiça. E os advogados fazem isso não por serem antiéticos, mas porque são pagos para defender seus clientes com as medidas que o sistema oferece. Também não é por culpa dos juízes, que têm de seguir este emaranhado de normas", disse o promotor.
Por outro lado, ele destaca que 90% da população carcerária é autora de crimes violentos. "Suponhamos que um rico e um pobre cometam homicídio. Até o último recurso, a regra seria a pessoa responder em liberdade, a não ser que ela ofereça risco. Qual é o conceito de risco que o direito usa? Por coincidência ou não, se o sujeito é pobre, ele oferece risco; se é rico não oferece. Aí você começa a desvendar um pouco como que, com as mesmas normas, se criam duas classes." Normas que, segundo o especialista, atrasam todas as fases do processo criminal.
LIVRO As contradições do Código Penal são tema do livro Só é preso quem quer – Impunidade e ineficiência do sistema criminal brasileiro, lançado recentemente pelo promotor. Na obra, ele foge da linguagem jurídica para detalhar, com riqueza de exemplos, as minúcias do direito penal, classificado por Araújo como a "criação das normas abstratas em relação ao comportamento humano, para apontar o que é correto ou não na sociedade". "A impunidade se constrói por meio de microdecisões do sistema, desde o ato da prisão até depois da sentença do juiz. Quando o preso pode progredir de regime, do fechado para o semiaberto, é solicitado que ele apresente uma comprovação de que pode trabalhar fora. O rico consegue apresentar, sai para trabalhar e depois volta para a penitenciária. Enquanto isso, o pobre, que não vai conseguir essa carta, continuará no fechado."
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