Tímidos toldos de cores brotam do nada, se espraiam guarda-chuvas sob os quais abundam as batidas de frutas e os chicharrones (torresmos) de porco. Tudo isso e muito mais cresce por estes dias nas ruas de Havana, em consequência das novas flexibilizações para o trabalho por conta própria. No entanto, os cubanos também esperam cautelosos até comprovar realmente quanto irreversíveis são essas reformas econômicas.
Se dependesse só da vontade política de nossos governantes, não estaríamos vivendo este despertar da criatividade cidadã. Basta recordar a Ofensiva Revolucionária de 1968 durante a qual se expropriou até as caixas com cera e escova dos engraxates. No entanto, a crise de produtividade que vive o país agora obrigou as autoridades a tomar medidas de emergência, entre elas a concessão de até 178 novas licenças para trabalhos independentes. Já havíamos experimentado um renascer similar, depois da explosão social de agosto de 1994 conhecida como o Maleconazo. Após aquela jornada de descontentamento público, Fidel Castro autorizou aquilo que mais detestava em seus vizinhos do Norte: a pequena empresa privada.
Relutantemente permitiu o aluguel de imóveis a turistas, as licenças para táxis particulares, os restaurantes no interior das residências e até os palhaços nas festas infantis. O frescor do impulso individual varria assim com décadas de monopólio estatal. Poucos anos depois nossas autoridades receberam um novo apoio financeiro externo. Desta vez não provinha do Kremlin, mas de Caracas, e eu forças ao deteriorado aparato governamental.
O Estado cubano, então, perdeu interesse nesses empresários locais que pagavam impostos e estavam ganhando demasiada autonomia monetária e ideológica. Se congelou a liberação de novas licenças, aumentaram os gravames e apareceram maiores restrições. Centenas de restaurantes fecharam e muitas cafeterias quebraram. O trabalho por conta própria passou a ser um raro espécime em uma sociedade que regressava à estatização. Como já havia ocorrido com o subsídio soviético, se dilapidou uma boa parte dos recursos venezuelanos nas ações de reforço à ideologia. Os petrodólares de Caracas foram dirigidos ao já fatigado estamento político, enquanto a indústria açucareira declinava em seu pior momento desde princípios do século passado e os serviços estatais submergiam no desvio de recursos. Quando fizeram as contas, as dívidas com outros países eram enormes e os números vermelhos de nossas finanças prenunciavam o colapso do próprio sistema. Foi hora de voltar a pensar nos esquecidos empresários nacionais, que por uma vez haviam contribuído para evitar o naufrágio da Ilha. Raúl Castro em pessoa anunciou a ampliação do número de licenças para trabalho por conta própria. A camisa de força que atazanava a iniciativa privada parecia afrouxar.
Os resultados são evidentes. Em apenas uns meses conseguimos recuperar sabores perdidos, receitas memoráveis, comodidades escondidas; mais de 70 mil cubanos tiraram novas licenças de trabalho independente. Apesar da cautela de muitos, dos impostos ainda excessivos e da ausência de um mercado atacadista, os pequenos comerciantes começaram a levantar a cabeça. Podem ser vistos montando seus timbiriches (botecos), colocando vistosos cartazes anunciando mercadorias, redistribuindo suas casas para criar uma cafeteria ou uma oficina. A maioria tem a convicção de que desta vez chegou para ficar, porque o sistema que tanto os asfixiou já perdeu a capacidade de competir com eles.
Fonte: O Globo, 06/02/2011
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