Bem à moda da casa, saímos da eleição de 3 de outubro com pendências para serem decididas pela Justiça. Foram concedidas liminares garantindo algumas candidaturas e são díspares as opiniões sobre a aplicabilidade imediata da lei que dispõe sobre o assunto. Mas, pelo sim, pelo não, a simples intenção de impedir a participação de candidatos cujo passado tem certificado de inconveniência já merece ser saudada. Sem exageros, contudo. A cena política não saiu purificada do pleito. O que vai acontecer, na prática, é mais ou menos o que se passa quando se trancafiam bandidos. Tem-se alguns bandidos a menos perturbando a sociedade, mas continua havendo muito bandido na rua.
O espírito que animou essa lei parte de uma visão política que adota a moral individual como foco do problema ético, como lembrava recentemente o professor de Direito Constitucional da UFRGS, Dr. Cézar Saldanha de Souza Júnior. A moral individual tem importância, é claro, mas está longe de ser a causa maior do que se condena na realidade nacional. Causam espanto o descaso, o desinteresse, a apatia, diante de um vício estrutural, de uma imoralidade institucionalizada que joga o Brasil no fundo do poço das condutas reprováveis. É desse vício estrutural, desse modelo ficha-suja que me ocupo aqui.
Desde antes do processo constituinte integro um grupo de estudiosos que, em vez de apontar o pecado e excomungar o pecador, se dedica exaustivamente a analisar as causas daquilo que tanto desagrada a nação. Em 2005, no auge da crise do mensalão, participei de um programa de debates no qual também estava presente um dos líderes do governo na Câmara dos Deputados. Em meio às conversas, afirmei que nosso sistema político, ao convergir para a mesma pessoa o Estado, o governo e a administração, e ao obrigar essa pessoa a comprar votos para compor sua necessária maioria parlamentar, introduzia na vida nacional uma perversão insanável. Nesse momento, o deputado exclamou: "O sistema é corruptor!". Aquela frase soou como música aos meus ouvidos. Afinal, alguém influente na base do governo e no parlamento nacional estava consciente a respeito do que afirmávamos havia tantos anos. Quem sabe aquela crise haveria de acender mais luzes e promover a necessária reforma institucional? Qual o quê! Serenados os ânimos, retomaram-se as mazelas. Saiu a lei da ficha-suja e preservou-se o pior: o sistema ficha-suja.
Entenda-me o leitor. Num sistema racional, a função governo é tarefa atribuída à maioria parlamentar. No nosso, é o presidente eleito que passa a comprar votos com ministérios, cargos da administração e das estatais, emendas parlamentares e favores de toda ordem. Mas não lhe basta fazer isso uma vez, no início do governo. É preciso continuar firmando essa maioria, com favores, a cada votação importante. Ademais, ao unir na mesma pessoa aquelas três funções antes referidas - chefia do Estado, do governo e da administração - o modelo proporciona uma inconveniente concentração de poderes e permite o total aparelhamento partidário do Estado e da administração. Ora, a neutralidade é atributo exigível de ambos. Partidário é o governo. O Estado e a administração não podem ter partido. O aparelhamento da administração vai fecundar o útero da corrupção.
Não espero que o leitor concorde inteiramente com o conteúdo deste artigo. Mas saiba: a mínima concordância já não permite o sacudir de ombros, o deixa para lá. O assunto é demasiadamente sério. O que seu deputado pensa a respeito disso não é apenas importante: é determinante para os rumos da democracia no Brasil.
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