A diferença fundamental da mentalidade numa sociedade livre e numa subjugada, é que na primeira temos atividade pública com elevado grau de transparência e a privacidade dos cidadãos respeitada; já na segunda, temos um Estado cheio de segredos e a vida do cidadão devassada.
Eduardo Afonso Bacelar
Eduardo Afonso Bacelar
Democracia é o regime político baseado na escolha pública; e a democracia-liberal na escolha publicamente feita por homens livres. Para fazer escolhas que mereçam esse nome, é preciso que haja o maior acesso possível à informação, e para que esta, por sua vez, esteja disponível, é indispensável que a livre manifestação de opinião e a transmissão de fatos e conhecimentos sejam plenamente garantidas, múltiplas e plurais.
Todos nós, que temos opinião a respeito das coisas, suspeitamos que a nossa seja a opinião certa. Alguns têm certeza. O problema é quando essa certeza se apresenta conjugada a um grau de poder capaz de fazer calar a divergência. Por isso, nada é mais importante numa sociedade que se pretende livre do que limitar o poder em geral e, particularmente, limitar imensamente o poder de sufocar a opinião discordante. Antes que eu me esqueça: isso vale, também, para os órgãos e profissionais de imprensa.
Dizia Popper que a única coisa intolerável é a intolerância, o que parece resolver todos os dilemas, mas não o faz. Ainda fica a descoberto definir o que é intolerância. Eu, por exemplo, quando tenho diferenças de opinião com a minha mulher, sempre acho que ela é muito teimosa, mas ela insiste em que o teimoso sou eu. De qualquer forma, tenho uma proposta que me parece infalível de como definir intolerância: é quando alguém nega ao outro aquilo que exige para si. Note-se que a tolerância não pede desculpas pelo dissenso ou pela diferença; apenas convive com eles sem agressão e isso já é um ótimo começo. Já o intolerante acha natural fazer ou vedar certas coisas que o deixariam furioso se fossem feitas ou vedadas para si.
Para sociedades livres, garantir o direito à livre expressão da divergência é indispensável à sua própria sobrevivência; já sistemas vocacionados para a opressão só prosperam se sufocarem, tanto quanto possível, toda a discordância eficaz. Infelizmente, isso não se expõe tão claramente quando seria de desejar. Quando o exercício do poder discricionário é exercido formalmente, assistimos a uma truculência com visibilidade; ocorre a censura oficial, por exemplo. Já quando o que predomina é a burla, ou seja, doura-se a pílula da intolerância política com uma retórica pseudodemocrática, “libertadora” ou “politicamente correta”, o que temos é a truculência com subterfúgio. É uma questão de estágio e método, mais do que de conceito: todo poder abusivo, mas não inteiramente declarado, digamos “informal”, sente-se provisório para vir a merecer o poder formalizado e manobra artifícios de legitimação.
Assistimos, entre nós, a um debate no mínimo curioso no que se refere às garantias de liberdade de imprensa, ou seja, da liberdade de expressão canalizada para órgãos de expressão pública. Alguns se preocupam e alertam para o fato de que o atual partido dominante insiste e rodeia, de todas as formas, em busca de maneiras e instrumentos que possam tutelar e encabrestar de vez os meios e veículos de comunicação social. Em paralelo, as mesmas fontes ideológicas que inspiram o atual governo, movem-se para propagandear um suposto combate ao oligopólio da informação. Em outras palavras, a pirueta é a seguinte: é preciso controlar os grandes órgãos de imprensa que não se mostrem suficientemente servis, mesmo aqueles que fazem o jogo, mas não entregam completamente a alma. Eles representam “interesses”, essa palavra terrível que no Brasil causa arrepios e nos remete, sabe Deus por que, ao Estado como salvação.
Não há censura no Brasil, exceto por caminhos tortuosos como o que hoje atinge o jornal O Estado de São Paulo, impedido judicialmente de divulgar reportagem envolvendo uma família poderosa que, por sua vez, é dona de órgãos de comunicação. Para haver censura propriamente dita seria preciso tirar a máscara e isso não é necessário. Muito melhor que censurar é controlar a imprensa através de dependência publicitária, acovardamento em dizer que o rei está nu, cooptação e intimidação de jornalistas, saturação da pauta, produção intensiva de siglas, slogans, factóides e, um dia, na milésima investida, através de conselhos e comissões de “ética” e de avaliação da correção política da linha editorial, como proposto, novamente, pelo tal Plano de Direitos Humanos, cuja publicação o presidente apresentou, assinou, mas não leu.
A crença tola, vigente entre nós, de que em tese o Estado se dedica, necessariamente, ao interesse de todos, é uma das fontes principais da nossa desgraça. Isso poderia conter certa verdade, se o poder público brasileiro fosse mais limitado e o nosso sistema representativo fosse um primor, mas, infelizmente, ele é assustadoramente ineficaz e há remota possibilidade de que venha a ser aperfeiçoado. Não faz parte do senso comum vigente a idéia de que é preciso levar muito a sério, no plano político, aquilo que deve ser vedado ao poder estatal e a gravidade dos riscos envolvidos. Nesse meio tempo, um Estado cada vez mais poderoso e aparelhado vai, sistemática e persistentemente, sufocando a divergência, embora um estrilo aqui e outro ali possam dar a ilusão de que tudo vai bem.
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