A história que vou contar poderia ser divertida não fosse expressão de um fascismo ainda suave que vai se insinuando na sociedade brasileira, especialmente no ambiente da cultura. Em nome do bem ou da liberdade, grupos de pressão tentam impor a sua agenda e calar seus adversários. É a turma que queria e ainda quer o “controle social da mídia”… Patrulham tudo: blogs, revistas, jornais, sites noticiosos, a ombudsman da Folha, programas de televisão, livros e, acreditem!, até gibis do Batman! Leitores me enviaram links de alguns blogs verdadeiramente espantosos. Não sei se é o autoritarismo que alimenta a burrice ou a burrice que alimenta o autoritarismo. É provável que seja uma coisa e outra, num ciclo realmente perverso.
No alto, vocês vêem a capa de uma revista (é assim que a gente chama? Não entendo nada desse assunto!) do Batman, publicada no Brasil pela Editora Panini. O bandidão dessa história, de Grant Morrison (roteiro) e Cameron Stewart (desenhos), é o “Rei Perolado”. Pois bem, num dado momento, uma das personagens se refere ao facinoroso como “petralha”. No original, em inglês, emprega-se “nasty”. A felicíssima tradução é de Caio Lopes. Quando uma pessoa é “nasty”, ela pode ser nojenta, horrível, asquerosa, odiosa, sórdida, malcriada, repelente, vil, desagradável, indecente, torpe e coisas desse paradigma… Em suma, é uma “petralha”. Caio marcou um golaço! Uma tradução busca na outra língua não o sinônimo frio, mas o termo que tem, além do significado semelhante, a mesma carga cultural. Não conheço a história, mas suponho que o “Rei Perolado” também deva ser trapaceiro, vigarista, essas coisas. Ou seja: UM PETRALHA!!!
Vocês acreditam que os petralhas resolveram reagir? “Como ousam usar uma palavra criada pelo Reinaldo Azevedo?” Há blogs protestando contra o que seria a “ideologização” da tradução! De fato, o neologismo é meu: trata-se, originalmente, da fusão de “petista” com “metralha”, dos Irmãos Metralha, os ladrões. Generoso, já disse até na TV que nem todo petista é petralha, mas todo petralha é petista. O que isso quer dizer: nem todo petista rouba, mas sempre que alguém roubar e tentar dizer que é para o bem do Brasil, não duvide: é um petista! Os ladrões dos outros partidos têm ao menos a honestidade dos bandidos: pegos em flagrante, jamais dizem que fazem safadeza em nome da causa. Adiante!
O vocábulo fugiu ao meu controle e foi virando sinônimo de gente que não presta. Não é a primeira vez que isso acontece na língua.
Esses caras são tão dedicados na sua patrulha que um Zé Mané aí se orgulha de ter, acreditem!, entrado em contato com a editora para reclamar. Márcio Borges, diretor de marketing e da área comercial da editora, deu uma resposta excelente, que merece nosso aplauso:
“A Panini considera o termo ‘petralha’ uma gíria que vem se popularizando no Brasil e, independente da origem do termo, não é mais utilizado no linguajar popular apenas com conotação política, mas como sinônimo para ‘asqueroso’, ‘nojento’ etc. A empresa ressalta que não tem qualquer intenção de utilizar seus produtos editoriais de entretenimento para fins políticos.”
Parabéns, Borges! Não se deixe patrulhar por desocupados. O inconformado missivista não gostou da resposta da editora e observou que o termo ainda não está dicionarizado. Pois é! Junta a ignorância ao autoritarismo. Está, sim!
“Petralha” e variantes - “petralhada” - já figura no “Grande Dicionário Sacconi” da língua portuguesa, conforme se pode ver abaixo. A definição é deliciosa. Leiam:
Espantoso
O que há de espantoso na corrente contra o emprego da palavra na tradução de uma revista do Batman? Os que protestam alegam que o termo incentiva a “intolerância”. Outros dizem que se trata de um abuso da “liberdade de expressão”!!! Como eles são muito tolerantes, então defendem a censura, entenderam?
De resto, ainda que “petralha” não tivesse caído na boca do povo com esse sentido mais amplo, ainda que continuasse a ser apenas o que era na origem - “petista + metralha” -, pergunto: o que há de errado em combater petista ladrão?
Bem, queridos, não sei se a revista ainda está nas bancas, mas vou comprar a minha, hehe. E os convido a torrar alguns tostões fazendo o mesmo, até como ato de desagravo ao achado lingüístico do tradutor e à editora, que teve de agüentar a patrulha boçal.
Não adianta! Vão ter de conviver com este fato: “petralha”, agora, faz parte da língua. E só foi parar no dicionário porque, afinal, existem os petralhas. A patrulha a um gibi e a uma editora prova que existem e que têm de ser combatidos.
Freqüentemente, também eu alargo o sentido da minha criação e emprego “petralha” como sinônimo de “fascista”. Faz ou não faz sentido?
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