Dois anos e três meses após a divulgação da fita em que Maurício Marinho, alto funcionário dos Correios, pôs no bolso do paletó R$ 3 mil e com o gesto marcou o início do escândalo do mensalão, o STF (Supremo Tribunal Federal) começou o julgamento dos 40 políticos e empresários acusados de envolvimento com o esquema de corrupção, na maior denúncia criminal da história investigada pela corte suprema do País. Em 22 de agosto de 2007, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, sustentou a denúncia no plenário do STF. Para ele, "o mensalão não existiria se não tivesse integrantes do governo" envolvidos na maracutaia. Referindo-se diretamente ao ex-ministro José Dirceu (PT-SP), afirmou: "É fato público que Dirceu sempre teve e ainda tem grande importância nas decisões do PT".
O procurador-geral da República citou José Dirceu e os dirigentes do PT José Genoino, Delúbio Soares e Sílvio Pereira para dizer que os quatro líderes do partido do presidente da República "ditavam as diretrizes, tinham o comando do procedimento criminoso". Para Souza, "a promiscuidade com o poder é o caldo de cultura perfeito para a viabilidade de interesses escusos". O procurador-geral falou em "quadrilha" e "organização criminosa":
- Os autos revelam de forma incontroversa os repasses, especialmente para parlamentares, de elevadas quantias em espécie, muitas vezes entregues em hotéis, a beneficiários que nem conferiam os valores recebidos, dinheiro acondicionado em pastas, sacolas e em envelopes de grande porte, valores depositados em conta no exterior não declarada, mediante a utilização de doleiros e de empresa offshore.
Os quatro petistas foram denunciados por agirem no que Souza chamou de "núcleo central da organização criminosa", cujo objetivo era buscar apoio político de parlamentares, pagar dívidas partidárias e arcar com gastos de campanhas eleitorais do PT e de partidos da base aliada do presidente Lula. Ele qualificou o empresário Marcos Valério como o "principal artífice do procedimento criminoso". Lembrou um jantar que reuniu José Dirceu e Marcos Valério em 2004, como evidência de que os dois mantinham relação próxima. Deu como exemplo, ainda, um fato que envolveu Simone Vasconcelos, ex-diretora da SMPB, agência de publicidade de Valério:
- Os autos revelam uma fartura incrível de dinheiro em espécie que transitou por caminhos tortuosos. Era tanto dinheiro circulando de modo atípico que Simone Vasconcelos, em determinada oportunidade, teve que pedir um carro-forte para transportar R$ 650 mil para a sede da empresa em Brasília, onde o montante foi repassado.
O procurador-geral acrescentou:
- Os repasses sempre à margem dos procedimentos bancários mais expedidos e mais seguros. Tal descrição, que é típica do submundo do crime, revela a rotina vivenciada pelos denunciados por muito tempo. Ao invés de valer-se dos mecanismos bancários mais ágeis e seguros, sempre se efetuava repasses de valores em espécie, acondicionados em pastas 007, em pacotes ou sacos de lona, em locais inadequados, tais como recepção e quartos de hotéis, bancas de revistas, ou mediante depósitos de contas no exterior, sempre com a máxima preocupação de impedir a identificação dos destinatários.
Na sustentação da denúncia, a menção ao caso Visanet, esquema por meio do qual dinheiro público do Banco do Brasil foi repassado a empresas de Marcos Valério e, em seguida, serviu para irrigar a corrupção:
- Foram recursos privados, oriundos de empresas com interesses patrimoniais escusos perante o governo, e dinheiro público, como no caso Visanet, as fontes que mantiveram ativo o ilícito sistema de transferência de recursos para parlamentares, dirigentes partidários e credores de partidos.
A denúncia foi corroborada por relatórios reservados do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, do Ministério da Fazenda), segundo os quais haveria indícios de operações suspeitas contra 27 dos 40 julgados pelo STF. Segundo reportagem de Andréa Michael, da Folha de S.Paulo, documentos do Coaf registraram que mensaleiros fizeram operações financeiras suspeitas para lavar R$ 1,2 bilhão entre 2001 e 2007.
Além disso, o Ministério Público do Distrito Federal propôs cinco ações de improbidade administrativa por mau uso do dinheiro público contra 35 dos 40 denunciados. Todos responderiam a processos civis por participação no esquema de compra de apoio político no Congresso. Entre os acusados estavam José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, Silvio Pereira, Marcos Valério, Roberto Jefferson (PTB-RJ) e Anderson Adauto (PMDB-MG).
Em outra ação por improbidade administrativa, o Ministério Público do Distrito Federal decidiu processar o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) por enriquecimento ilícito e violação dos princípios de moralidade na administração pública. Ele foi acusado de ter recebido R$ 50 mil de Marcos Valério no Banco Rural, dinheiro sacado pela mulher do parlamentar. Em troca da propina, teria havido a contratação da agência SMPB pela Câmara dos Deputados, presidida na época por Cunha. A ação implicou também Silvana Paz Japiassu, assessora do deputado, que teria recebido de Marcos Valério passagens aéreas e hospedagens para ela e a filha.
Para completar, as supostas dívidas contraídas nos Bancos Rural e BMG para sustentar o chamado valerioduto, atualizadas em mais de R$ 100 milhões, não haviam sido pagas após mais de dois anos. Um indício de que não passavam mesmo de "pseudos-empréstimos", "empréstimos simulados" ou, em português claro, operações de lavagem de dinheiro para irrigar o esquema de caixa 2 que teria sido engendrado por lideranças do PT a fim de obter apoio e maioria no Congresso, favorecendo o governo Lula. Os empréstimos, portanto, teriam sido forjados e não faria sentido quitá-los.
Em 28 de agosto de 2007, o STF decidiu abrir processos criminais contra todos os 40 acusados pela Procuradoria-Geral da República. José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares foram acusados por corrupção ativa e formação de quadrilha, ou seja, por oferecer ou dar vantagens indevidas, e por associação em bando com o objetivo de cometer crimes. Outros dois ex-ministros de Lula também estavam entre os denunciados. Luiz Gushiken (PT-SP), da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, por peculato, ou seja, uso do cargo para fazer apropriação indevida, e Anderson Adauto (na época no PL, atual PR), do Ministério dos Transportes, por corrupção ativa e lavagem de dinheiro, isto é, ocultar ou dissimular a origem criminosa de dinheiro ou bens.
Além dos cinco denunciados, mais dez se destacaram entre os demais. São os seguintes: Marcos Valério, Duda Mendonça, Roberto Jefferson, Silvio Pereira, João Paulo Cunha, Valdemar Costa Neto, José Janene, José Borba, Paulo Rocha e Henrique Pizzolato. Eis a relação dos outros 25 nomes: Pedro Corrêa, Pedro Henry, Bispo Rodrigues, João Magno, Emerson Palmieri, Romeu Queiroz, Jacinto Lamas, João Cláudio Genu, Enivaldo Quadrado, Breno Fischberg, Carlos Alberto Quaglia, Antonio Lamas, Ramon Hollerbach, Cristiano Mello Paz, Rogério Tolentino, Simone Vasconcelos, Geiza Dias, Kátia Rabello, José Roberto Salgado, Ayanna Tenório, Vinícius Samarane, José Luiz Alves, Anita Leocádia, Professor Luizinho e Zilmar Fernandes.
Ao defender o processo contra José Dirceu, o ministro Joaquim Barbosa, relator do caso no STF, afirmou que o ex-ministro "era o mentor e o comandante supremo da trama, em que outros personagens faziam o papel de meros auxiliares". Do relator Joaquim Barbosa:
- Está suficientemente demonstrado na denúncia que José Dirceu seria o mentor, o chefe incontestável do grupo, a pessoa a quem todos os demais prestavam deferência.
José Dirceu, como ministro da Casa Civil, era o principal auxiliar do presidente Lula. Não há dúvida sobre isso. Mas ele não engendraria um esquema de tamanha complexidade, com o intuito de corromper parlamentares com dinheiro público, sem a anuência do chefe. Lula, aliás, foi o grande beneficiário da maioria forjada, que lhe deu apoio e votos no Congresso. Só Lula poderia ser considerado o "comandante supremo da trama", ou o "chefe incontestável do grupo", como definiu o ministro Joaquim Barbosa.
O STF aceitou investigar uma nova denúncia da Procuradoria-Geral da República, que não havia sido incluída anteriormente. De acordo com a acusação, dinheiro público repassado pelo Ministério do Esporte à agência de publicidade SMPB, de Marcos Valério, acabou na conta bancária de Anita Leocádia Pereira Costa, assessora do deputado Paulo Rocha (PT-PA).
Funcionou assim: R$ 202 mil do Ministério do Esporte foram depositados em conta da SMPB no Banco do Brasil, em 16 de dezembro de 2003. Dois dias depois, houve transferência de R$ 200 mil daquele total para outra conta da SMPB, desta vez no Banco Rural. No mesmo dia, R$ 146 mil seguiram para uma segunda conta da SMPB, no mesmo Banco Rural. O destino do dinheiro seria ainda uma terceira conta da agência de publicidade, naquela agência do Rural. No mesmo 18 de dezembro, Anita Leocádia Pereira Costa sacou R$ 120 mil do total. Conforme a denúncia, o dinheiro que ficou com a petista era, originalmente, do Ministério do Esporte.
Também fez parte da denúncia da Procuradoria-Geral da República ao STF a acusação de Lúcio Bolonha Funaro, operador do mercado financeiro. Ele havia feito um acordo de delação premiada. Afirmou que, com outros dois doleiros, emprestou R$ 3 milhões ao então presidente do PL (atual PR), deputado Valdemar Costa Neto (SP). O dinheiro serviria para cobrir supostos gastos da campanha eleitoral do presidente Lula em 2002.
De acordo com Lúcio Funaro, Valdemar Costa Neto era beneficiário de uma conta secreta abastecida com dinheiro de propina no banco BCN de Nova York. O doleiro disse que tomou conhecimento dessa conta em 2002. Quem lhe contou foi Henrique Borenstein, ex-diretor do BCN, ao procurar dar garantias de que os R$ 3 milhões emprestados a Valdemar Costa Neto seriam mesmo devolvidos. Havia a conta secreta do BCN. De Henrique Borenstein:
- Fique tranquilo. Eu administro essa conta e ela tem um saldo de US$ 1,2 milhão. Se Valdemar não pagar, eu transfiro o dinheiro para você.
Conforme reportagem de Diego Escosteguy, na revista Veja, a conta em Nova York foi abastecida pelo pai de Valdemar, o ex-prefeito de Mogi das Cruzes (SP) Waldemar Costa Filho. Ele contraíra empréstimos do BCN para os cofres da administração municipal, no começo dos anos 90, a juros "muito acima" dos praticados no mercado. Da reportagem publicada em 29 de maio de 2009: "O pagamento pela camaradagem do prefeito, ou seja, a propina, era depositado na conta aberta por Borenstein em Nova York, cujo beneficiário era o filho, o deputado Valdemar Neto".
Em três depoimentos prestados entre novembro de 2005 e março de 2006, Lúcio Funaro disse ainda que José Dirceu poderia ter recebido R$ 500 mil de fundos de pensão. Trecho do depoimento:
"Que tem conhecimento de que o diretor-presidente e o diretor financeiro da Portus foram indicados por Dirceu; que essa transação envolveu um pagamento 'por fora', que não sabe se destinado ao próprio deputado ou ao PT, da ordem de R$ 500 mil."
O doleiro acusou o deputado José Mentor (PT-SP) de receber propina para livrar suspeitos que deveriam ser investigados pela CPI do Banestado, da qual José Mentor foi relator, em 2004. Funaro admitiu ter sido sócio oculto da empresa de fachada Guaranhuns, acusada de repassar dinheiro do mensalão.
Três meses após o início do julgamento do mensalão pelo STF, o procurador-geral anunciou novas provas baseadas em perícias do Instituto de Criminalística, da Polícia Federal. De acordo com Antonio Fernando de Souza, foi possível rastrear dinheiro público do Banco do Brasil, de forma a comprovar o uso de recursos do fundo Visanet no esquema de corrupção.
A denúncia criminal havia sido feita com base no depoimento de testemunhas. Com a conclusão dos trabalhos de perícia, ficou registrada a "dança" de R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil para as agências de publicidade DNA e SMPB, de Marcos Valério, a partir da suposta determinação do ex-ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, Luiz Gushiken (PT-SP). Depois disso, o mesmo dinheiro público teria abastecido o valerioduto.
Conforme o laudo do Instituto de Criminalística, a DNA se apropriou indevidamente de pelo menos R$ 39,5 milhões do Banco do Brasil. O dinheiro lastreou empréstimos que engordaram o caixa 2 do PT. Os peritos fizeram uma varredura em números de contas bancárias, valores envolvidos, datas e locais das retiradas. Os R$ 39,5 milhões incluíram lucros em aplicações financeiras feitas com dinheiro antecipado pelo Banco do Brasil, serviços devidamente quitados sem que houvesse comprovação da execução dos trabalhos e honorários considerados exagerados.
Entre as operações irregulares, a DNA embolsou R$ 5,3 milhões ao obter deságios com fornecedores, desconto que deveria ter sido devolvido ao cliente. A autorização formal para depositar R$ 73,8 milhões da Visanet na conta da DNA foi dada pelo então diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato. Anteriormente, os valores eram destinados direta e individualmente aos fornecedores.
Após o acolhimento da denúncia pelo STF, todos os mensaleiros, um a um, depuseram sob orientação de advogados dos mais bem pagos do País. Trataram de refutar as acusações e desqualificar a denúncia do procurador-geral da República. Nada de ilegal teriam cometido. Todos – garantiram e reiteraram – não tinham envolvimento com quaisquer fatos que os desabonassem. Negaram todas as evidências. Admitiram tão somente o uso de dinheiro de caixa 2, e para pagar despesas de campanha eleitoral. Um crime menor. Articulados, advogados de defesa evitaram fazer perguntas que pudessem prejudicar os outros réus. Ao contrário. Trataram de se reunir constantemente e interpelar os denunciados de forma a ajudar uns aos outros.
O depoimento do ex-deputado Pedro Corrêa (PP-PE), cassado na esteira do escândalo do mensalão, foi exceção. Ele afirmou ter negociado com o PT o pagamento de serviços advocatícios para o então deputado Ronivon Santiago (PP-AC), em troca de apoio parlamentar ao governo Lula. O dinheiro teria sido pago em três parcelas, sendo duas de R$ 300 mil, em agência do Banco Rural em Brasília, e outra de R$ 100 mil, entregue em hotel da capital federal.
Deu-se bem Silvio Pereira, o ex-secretário-geral do PT que durante os bons tempos do mensalão ganhou de presente um jipe Land Rover de empresa fornecedora da Petrobras. Ele fez acordo com a Procuradoria-Geral da República para suspender o processo que seria obrigado a responder. A punição de "Silvinho": durante três anos, teria de prestar 750 horas de serviços comunitários à Prefeitura de São Paulo. Além disso, o ex-secretário-geral se comprometeu a comparecer periodicamente à Justiça e a comunicar previamente qualquer viagem longa que pretendesse fazer.
Silvinho se disse "aliviado" com o que conseguiu. Ao aceitar a punição dos trabalhos comunitários, contudo, admitiu ter cometido práticas delituosas e pôs em situação constrangedora os outros acusados, companheiros seus, que respondiam por crimes mais graves e não puderam se beneficiar do acordo que o livrou de uma condenação mais rigorosa.
No governo Lula, Silvinho foi responsável pela distribuição de cargos de segundo escalão. Como se sabe, as posições na máquina administrativa não valiam pelos salários que representavam, mas sim pelo poder que seus ocupantes desfrutavam ao usar o emprego público para enriquecer, fraudando licitações, contratos e desviando os recursos que deveriam servir para atender as necessidades do povo e do País. Afinal, o dinheiro que sustenta as máquinas públicas vem de impostos arrecadados da população.
Apesar dos serviços comunitários, Silvinho usufruiu o segundo mandato de Lula. Em 2007, Júlio César dos Santos, dono da TGS Consultoria e sócio do onipresente José Dirceu, subcontratou a DNP Eventos, empresa registrada em nome da mulher de Silvinho, Deborah Neistein, e do irmão dele, Ademir Pereira. Aparentemente, a empresa era dirigida mesmo por Silvinho e deveria organizar um evento cultural no Espírito Santo. A TGS, por sua vez, havia sido contratada sem licitação pela Petrobras. A prestação de serviços rendeu R$ 55 mil à DNP. Sempre a Petrobras na vida de Silvinho.
Em 2008, Silvinho estaria construindo uma pousada em Ilha Bela, praia do litoral norte de São Paulo. Lá, foi visto com frequência desfilando num novo automóvel. Não um Land Rover, como o que provocara o escândalo em 2005, mas um autêntico Toyota Fielder, avaliado em R$ 65 mil.
Outro personagem que "brilhou" na era Lula, o publicitário Duda Mendonça. Ao depor no processo do mensalão, em janeiro de 2008, disse desconhecer a origem dos R$ 10,5 milhões repassados a ele por Marcos Valério, numa empresa offshore, em pagamento por serviços prestados em campanhas eleitorais, entre as quais a que elegeu o presidente Lula em 2002.
Em seu depoimento, Duda Mendonça admitiu o não-pagamento de impostos e informou ter quitado multa referente à sonegação, no valor de R$ 4,3 milhões. Apesar da acusação de lavagem de dinheiro, o publicitário continuou prestando serviços à Petrobras no segundo mandato de Lula, dentro de um contrato de R$ 250 milhões. Duda Mendonça também teria expandido negócios agropecuários em propriedade rural no sul do Pará.
Ao depor à CPI dos Correios, em 2005, o diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, afirmou ter recebido ordem do então ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, Luiz Gushiken (PT-SP), para repassar recursos de publicidade do fundo Visanet a empresa de Marcos Valério. O dinheiro, como se sabe, acabaria no PT e financiaria atividades de caixa 2 do partido do presidente da República.
Ao depor à Justiça no processo do mensalão, acusado de corrupção passiva, Henrique Pizzolato voltou atrás e livrou o ex-ministro Luiz Gushiken de qualquer responsabilidade. Em fevereiro de 2008 justificou a reviravolta ao alegar que, na época da CPI, "estava sob ameaça de que iam me prender. Não tive condições de raciocinar. Fui coagido, ameaçado e humilhado". É mesmo?
Henrique Pizzolato teve dificuldades ao explicar à Justiça o episódio em que mandou o officeboy Luiz Eduardo Ferreira pegar envelope com R$ 326 mil em agência do Banco Rural no Rio de Janeiro. Ele estava atendendo, segundo ele mesmo, a um pedido de uma secretária de Marcos Valério, a quem não conhecia. Tampouco conhecia o conteúdo do envelope, o qual Marcos Valério desejava que chegasse às mãos do PT. Segundo Pizzolato, ele simplesmente deixou o envelope com os "documentos" para "pessoa do PT", na portaria do prédio em que residia. Obviamente não revelou o nome do recebedor.
O incrível da história é que, após pôr as mãos no envelope com R$ 326 mil, em janeiro de 2004, o então diretor do Banco do Brasil comprou um apartamento em Copacabana, na badalada zona sul do Rio, por R$ 400 mil. Aqui, Pizzolato se contradisse: depois de garantir ter quitado o imóvel com pagamento em cheque, acabou por confessar a entrega de R$ 100 mil em dinheiro vivo. Mas a vida não deixou de sorrir para Pizzolato: aposentado pelo Banco do Brasil com R$ 13 mil mensais, continuava morando no mesmo e bem situado apartamento em Copacabana.
Luiz Gushiken também se deu bem. Apesar de denunciado por peculato e acusado pelo desvio de recursos de contratos de publicidade do Governo Federal para empresas de Marcos Valério que irrigaram o caixa 2 do PT, o ex-ministro, um dos auxiliares mais próximos de Lula, abriu uma empresa de consultoria em 2007. E voltou a morar numa chácara no interior de São Paulo.
O único revés do ex-ministro teria sido a decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) de aplicar-lhe multa de R$ 30 mil. Mesmo assim, Gushiken iria recorrer. De acordo com o levantamento do TCU, em sua gestão houve contratos de publicidade com orçamentos forjados e falta de controle sobre a veiculação de anúncios federais. Uma auditoria apuraria supostos prejuízos de R$ 9 milhões com serviços de publicidade não-prestados ou superfaturados. A maracutaia envolveria, entre outros, o publicitário Duda Mendonça.
Os deputados Valdemar Costa Neto (PR-SP, ex-PL) e Paulo Rocha (PT-PA) definitivamente não tiveram do que reclamar. Com medo de cassação depois de acusados de envolvimento com o mensalão, renunciaram aos mandatos, ainda em 2005, para se candidatarem no ano seguinte. Reeleitos, os dois tiveram os processos por decoro parlamentar arquivados pelo Conselho de Ética da Câmara. A medida também beneficiou o deputado João Magalhães (PMDB-MG), que fora envolvido com a máfia das ambulâncias.
Note-se que tanto Valdemar Costa Neto quanto Paulo Rocha foram denunciados pelo procurador-geral da República por fazer parte de organização criminosa e, por isso, passaram a ser investigados pelo STF (Supremo Tribunal Federal). O primeiro sofreu a acusação de receber R$ 6,5 milhões do valerioduto. O segundo, teria posto as mãos em R$ 920 mil.
Interessante o adendo ao relatório que livrou os mensaleiros, de autoria do deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP), segundo o qual parlamentares não devem ser investigados pelo Conselho de Ética por fatos ocorridos em legislaturas passadas, exceto se acusados após as eleições ou se surgirem fatos novos na denúncia. Ou seja: a investigação de deputados que renunciaram seria uma afronta à vontade dos eleitores, não importando se os senhores parlamentares abriram mão dos mandatos aproveitando brecha na legislação para fugir da cassação, nem se usaram o dinheiro supostamente desviado a fim de comprar os votos necessários para garantir os novos mandatos. Para constar: o patrimônio de Paulo Rocha teria subido 1.248% entre os anos de 2002 e 2006, isto é, ainda no primeiro mandato do presidente Lula.
Cabe ressaltar, ainda, o paradeiro de dois mensaleiros, estrelas de primeira grandeza em razão dos cargos ocupados. José Genoino (PT-SP) e João Paulo Cunha (PT-SP), respectivamente presidente nacional do partido e presidente da Câmara dos Deputados, no primeiro governo Lula. Ambos voltaram a Brasília em 2007, protegidos por mandatos de deputado federal. Se antes eram participantes e eloquentes, passaram a se "esconder" no fundo do plenário, como se o tempo fosse capaz de apagar a mácula do escândalo do mensalão.
Agora Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT, para quem as investigações do mensalão dariam em nada e seriam, no futuro, motivo de "piada de salão". Apesar de receber como professor da rede pública de Goiás durante sete anos, sem trabalhar, Delúbio Soares ainda mantinha o direito de lecionar, mais de dois anos após a descoberta do "fantasma". Ele não fora desligado do cargo, apesar de já condenado a restituir R$ 164 mil recebidos indevidamente.
Em Buriti Alegre (GO), conforme descreveu o repórter Hudson Corrêa, na Folha de S.Paulo, Delúbio Soares era uma celebridade. Em 15 de agosto de 2007, por exemplo, ele subiu no palanque com o governador Alcides Rodrigues Filho (PP) para inaugurar um frigorífico. Depois, Delúbio Soares acompanhou o governador ao aeroporto local, num automóvel Vectra registrado em nome do irmão do ex-tesoureiro, o vereador de Goiânia Carlos Soares (PT). Detalhe: um outro veículo escoltava o carro de Delúbio, com dois homens. Para dar segurança ao ex-tesoureiro.
Em 23 de janeiro de 2008, Marcos Valério, enigmático, encaminhou quatro questões a Delúbio Soares, que depunha à Justiça no processo do mensalão. Vale a pena: 1) O interrogando participou de alguma reunião nos anos 2003 a 2005 com Antonio Palocci? Para tratar de qual assunto? 2) Se encontrou alguma vez Marcos Valério fora do Brasil? 3) Se encontrou alguma vez com alguma autoridade chinesa? 4) Frequentou a Granja do Torto, em Brasília? Em caso afirmativo, em companhia de quem?
Não se sabe o que Marcos Valério pretendia. Pareceu ser uma ameaça velada ao PT, inclusive a Lula, como quem diz "façam o que estou pedindo". Não há notícias se obteve êxito. É provável que sim, tanto que não voltou mais ao assunto. Ao contrário. Seu depoimento à Justiça tratou de refutar todas as evidências que existiam contra ele e contra outros personagens do mensalão. Confirmou-se, por outro lado, que Marcos Valério se encontrou com petistas, depois de espernear. Quanto a Delúbio Soares, manteve-se frio. Característica dele. Não respondeu a provocação de Marcos Valério. Pelo menos em público.
Em seu depoimento, o ex-tesoureiro agradeceu Marcos Valério pelos empréstimos que abasteceram os cofres do PT nos anos de 2003 e 2004, o que teria permitido a ele cobrir dívidas e despesas do partido. Por outro lado, Delúbio Soares disse não ter tomado decisões sozinho, e que o comando do PT sabia do rombo nas finanças do partido. Nas palavras do ex-tesoureiro:
- Fizemos uma reunião no Partido dos Trabalhadores, com todos os Estados, agora estou me lembrando, quase R$ 26 milhões era a dívida dos diretórios regionais. E eu apresentei esse problema à executiva. A executiva: "Encontra uma solução".
Da reunião teriam participado, conforme Delúbio Soares, o senador Aloizio Mercadante (SP), o deputado Jorge Bittar (RJ), a então prefeita Marta Suplicy (SP), o presidente da legenda, José Genoino (SP), e os dirigentes partidários Silvio Pereira, Valter Pomar, Romênio Pereira e Joaquim Soriano. A solução encontrada por Delúbio Soares, soube-se depois, foi o valerioduto.
Bode expiatório, Delúbio Soares acabou sendo o único expulso do PT por conta do escândalo do mensalão. Silvio Pereira solicitou a própria desfiliação, e José Genoino e Marcelo Sereno, secretário de Comunicação, renunciaram aos cargos. Mas Delúbio Soares não se deu mal. Como celebridade, o velho amigo de Lula dos tempos de sindicalismo andava para cima e para baixo em São Paulo. Quando não estava na capital paulista, passava a maior parte do tempo na fazenda de Buriti Alegre, registrada em nome do pai. Em Goiânia, o ex-tesoureiro passou a se apresentar como consultor de empresas. Lá teria aberto uma agência de publicidade, para vender anúncios na internet.
Daqueles que perderam o emprego em decorrência do escândalo do mensalão, o ex-ministro José Dirceu parece ter sido quem mais demonstrou competência para se adaptar à condição de consultor de empresas. Segundo a revista Veja, o capitão do time de Lula, fora do governo, embolsava até R$ 150 mil por mês em consultorias, circulava em carro com motorista e frequentava os melhores restaurantes, onde era visto com charutos cubanos.
José Dirceu comemorou com festa o lançamento de seu site na internet, implantou fios de cabelo para melhorar o visual e teria comprado uma casa para a mãe, no interior de Minas Gerais. Sócio de um escritório de advocacia, tocava uma empresa de consultoria, mas a maior parte do tempo viajava para a Europa, Estados Unidos, Canadá e vários países da América Latina, sem contar os numerosos percursos dentro do Brasil.
O ex-ministro Dirceu tinha para descansar o belo sobrado em Vinhedo (SP), dentro de condomínio fechado. Ali ocorreu talvez a única dor de cabeça do ex-deputado, além do constrangimento de ter de reconhecer, em depoimento à Justiça, que se reuniu com Marcos Valério e diretores dos bancos Rural e BMG no Ministério da Casa Civil. Quatro meses após deixar o governo, ladrões arrombaram a casa de Vinhedo e levaram aparelho televisor de plasma, charutos, chocolates e um tapete vermelho.
Como José Dirceu, Marcos Valério também virou consultor de empresas e fez implante de cabelo para mudar a aparência. Apesar de ter ficado com os bens bloqueados pela Justiça, o empresário reformou sua mansão no bairro de Castelo, em Belo Horizonte, e arrendou uma fazenda no interior de Minas Gerais, a fim de criar cavalos de raça. Manteve também a mansão em Brumadinho, região metropolitana da capital mineira, e atendia clientes no elegante escritório do bairro de Savassi, na zona sul de Belo Horizonte. No lugar das malfadadas agências de publicidade SMPB e DNA, Marcos Valério comandava a nova agência Bárbara Comunicação. Vida nova.
Um dos pivôs do escândalo do mensalão, denunciado por formação de quadrilha, corrupção ativa, peculato, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, Marcos Valério seguia confiante de que se livraria das acusações de envolvimento com operações de crédito milionárias, supostamente forjadas para justificar a movimentação de caixa 2 do PT. Ao depor à Justiça Federal, em fevereiro de 2008, disse que o então ministro José Dirceu sabia dos empréstimos tomados pela SMPB junto aos bancos Rural e BMG, embora tivesse tratado do assunto apenas com o "amigo" Delúbio Soares e o secretário-geral do PT, Silvio Pereira.
Como o lendário Al Capone, os maiores apuros de Marcos Valério pareciam girar em órbita dos problemas com o Imposto de Renda. Em junho de 2007, a Justiça Federal instaurou ação penal por sonegação de R$ 54,7 milhões de tributos da agência de publicidade DNA, entre 1999 e 2002. Conforme o Ministério Público, Marcos Valério e seus sócios lesaram o Fisco com a "simulação do furto de um veículo que, segundo os réus, transportava documentação exigida pela Receita durante autuações que tinham o objetivo de apurar a real movimentação financeira da empresa".
Para se livrar de uma condenação de dois anos e 11 meses por crime contra a ordem tributária, Marcos Valério pagou R$ 6,8 milhões ao INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) em maio de 2006. De acordo com o Ministério Público, a fraude ocorrera no pagamento de funcionários da DNA, entre 1996 e 1999. Alguns receberam salários por fora da folha de pagamento, enquanto outros ganharam mais do que o declarado na contabilidade da empresa.
Em maio de 2008, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou Marcos Valério por falsidade ideológica e por comprar notas fiscais frias para a agência SMPB nos anos de 2002 e 2003. O empresário pagaria entre 3% e 4% do valor de cada nota falsa emitida. Condenado a um ano de prisão em regime aberto, teve a pena convertida em multa de dois salários mínimos somada à prestação de serviços comunitários por dois anos.
Dois meses depois, a 9ª Vara Criminal da Justiça Federal de Belo Horizonte recebia denúncia do Ministério Federal. Marcos Valério e a mulher, Renilda Santiago, passariam a responder, com outros ex-sócios da SMPB, por crimes de sonegação tributária, falsificação de documentos públicos, uso de documentos falsos e formação de quadrilha. Os réus teriam sonegado pelo menos R$ 90 milhões em impostos, entre 2003 e 2004.
Foram detectadas fraudes na movimentação bancária da agência SMPB junto a várias instituições financeiras. Conforme a acusação, recursos vultosos saíram e entraram nas contas da empresa, lançados, na maioria dos casos, como empréstimos para o PT. Ao mesmo tempo, valores incorretos sobre as operações eram registrados na contabilidade da SMPB. A agência de publicidade não teria recolhido vários impostos.
Em novembro de 2008, o Ministério Público Federal em Belo Horizonte denunciou Marcos Valério e outras 26 pessoas, incluindo dirigentes e ex-diretores do Banco Rural, por crimes ligados ao chamado mensalão mineiro. O esquema de caixa 2 teria desviado pelo menos R$ 3,5 milhões de recursos públicos para a campanha de reeleição do governador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) em 1998. Entre os acusados estava João Heraldo Lima, que ocupava o cargo de secretário da Fazenda de Eduardo Azeredo na época do mensalão mineiro. Ele havia se tornado presidente do Banco Rural. Também foi denunciado Rogério Tolentino, sócio de Marcos Valério. Em 1998, Rogério Tolentino era juiz eleitoral em Minas Gerais. Teria recebido R$ 300 mil para favorecer Eduardo Azeredo nas eleições.
Da mesma forma que José Dirceu, pouco se soube das atividades de Marcos Valério como consultor de empresas depois do escândalo do mensalão. Um dos "trabalhos" do empresário, porém, veio à tona em 10 de outubro de 2008. Deu o que falar. Naquele dia foram presos Marcos Valério, o sócio Rogério Tolentino, policiais federais e advogados, durante a Operação Avalanche da Polícia Federal. A acusação: forjar um inquérito policial contra dois fiscais da Fazenda paulista, responsáveis por multar em R$ 104,5 milhões a empresa Praiamar, do empresário Walter Faria. A Praiamar fazia parte grupo Petrópolis, detentor da marca de cerveja Itaipava.
O falso inquérito tinha a finalidade de intimidar e constranger os fiscais. Familiares deles seriam interrogados e desmoralizados, e com isso se esperava forçar a anulação da multa por fraude fiscal no comércio de cerveja. Marcos Valério teria contratado dois advogados que, associados a três investigadores de polícia, teriam levantado informações pessoais sobre os fiscais. Com base nos dados obtidos, encomendaram o inquérito policial a dois delegados federais. Valério teria armado tudo na condição de conselheiro da Praiamar.
A Justiça Federal de Santos, no litoral sul de São Paulo, aceitou acusação do Ministério Público Federal contra Marcos Valério. Ele passou a responder por formação de quadrilha, corrupção ativa e denunciação caluniosa. Teria havido uma trama para provocar um acidente automobilístico com a finalidade de ferir um dos fiscais da Fazenda que multaram a cervejaria. Walter Faria, dono da Petrópolis, também virou réu. De acordo com a Polícia Federal, ele ofereceu R$ 3 milhões pela abertura do falso inquérito e o vazamento da história para a imprensa. Se os fiscais fossem presos, pagaria R$ 5 milhões.
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